terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Este Presépio


pintura/Langue de Morretes
(1953)


Do meu amor eu não o canto a Babel
nem o vejo no delírio do povo
este tabernáculo é quintal
e guarda o meu pé de sabugueiro as floradas
da minha criança
bebo da losna amassada
escrevo com cunha de pinhão e derramo
do cálice esta pinha desfolhada
pinta a manjedoura do céu a pomba a estrela guia da araucária
Este presépio é pastor das minhas ovelhas




Feliz Natal!
Próspero e Abençoado Ano Novo de 2011!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Uma mesa


pintura/Wladislau Slewinski



Memoriais de Sofia/Zocha



Era uma mesa de madeira com gaveta para talheres e fazia parte de um jogo de cozinha com quatro cadeiras, caixão para lenha e um guarda-comida azul. Seu tampo era de cerne de madeira virgem, cheirando à araucária viva. Era uma mesa que pensava, que nos olhava e que
ajoelhava-se para que nós fizéssemos a ceia em seu colo.Quando a mãe a lixava com pedra ficava com a pele mais alva ainda e sensível e talvez até chorasse sem que víssemos.Era o anteparo para o nosso encontro com as substancias de nós mesmos e os objetos que ali nos esperavam como nossa extensão.
No quadrado da cozinha, a roda daquela mesa girante nos girava e recolhia-nos como numa cerimônia em derredor de uma linha mítica e ancestral.
E nesta espiral uma geometria sem conceitos quando o trigo se esparramava sobre as taboas e
a mãe amassava a farinha com a vida, a morte e suas raízes.
O que pode se depositar sobre uma mesa? Para que serve uma mesa?
Uma mesa é um anteparo de ceia e de deserção
e pode ser um lugar e um tempo onde acontecem o encontro, a partilha e também a separação das substancias. As substâncias invisíveis que habitam as palavras das coisas e o espírito da fome.


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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Daquela cerca de ripas


imagem/Milton Dacosta

Memoriais de Sofia/Zocha

Hoje lembrei da cerca de ripas
da casa da rua Goiás
Não sei por que
também me fez lembrar a fechadura do portão naturalmente
das goelas das bocas de leão cor de vinho
dos mosquinhos do jardim de dona Sofia
e dos olhos fundos nascidos nas covas frágeis de Floramy
Não sei porque lembro-me daquela barrenta rua
para pegar o ônibus
dos botecos onde se compra salsicho para o almoço
da geladeira Clímax Vitória quantas vezes vazia
do capilé e do Qsuco para o dolé
das luas de queijos da casa paroquial
daquelas poltronas de pèzinho fino como sapatilhas
dançando na sala vazia...
do vaso quebrado atrás da porta
do televisor Empire que pegava mal
do chuvisqueiro daquela tela preto e branco
do riso miudinho da parteira dona Margarida
do tom de azul escuro da cozinha pintada a óleo
dos ruídos do amor no quarto da frente quando meu pai chegava de viagem



da couve manteiga que ela plantava e colhia e cortava bem fininha e depois fazia refogadinha para ele
Não sei porque me lembrei daquela cerca de ripas ponteaguda
do piso encerado de vermelhão da pequena área
das minhas tranças que cresciam rápidas
dos fios dos novelos de lã da venda do Rufino
alinhavando essas dores sem tempo
Já espetei o dedo
mas não consigo despregar os olhos
daquela cerca de ripas
da pereira carregada de flores
do sorriso amarelado de Leontcho
do outro lado da rua
calçado de chinelos sobre a calçada de cimento branco e debruçado sobre seu portão de ripas/ele não fica dependurado na cerca como o Dirceu polaco com tantas estórias mal contadas...

Hoje eu gostaria de ficar embrulhada
entre os crivos das blusas de cambraia de Zocha
naquele branco límpido cristalino sem carimbos
No alvejado algodão do divino deus da minha infância
de pontos bordados com fios de barbante
um a um dedilhados como sonoras notas
de uma acústica de anjos ainda não trincada
por não abrir a porta a quem não deve
Queria ficar nessa brancura de asas
sentar-me no beiral do vento e uivar-lhe essa criança
flanando branca borboleta a assustar
as portas abertas
a estremecer as janelas fechadas

a desafiar a revoada de olhos d´ água
quando se perdem pelo céu
em busca de alvuras perdidas



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