terça-feira, 21 de junho de 2011

Quando a aldeia mudou de lugar


Gravura/Poty Lazzarotto




(Memoriais de Sofia/Zocha)




Quando a aldeia mudou de lugar ela chorou.
Havia deixado lá os rastros e as sementeiras dos pés, havia escrito trovas pelas cercanias dos ventos e levantado voos. Voava com as rochas, voava com os rios, voava companheira das árvores, era um quintal voador e das sementes choviam plátanos e trigais sobre os cabelos da menina Zocha. Mas os olhos da aldeia escureceram, debandearam, os ossos não se fixaram mais nas covas, havia frieza , arrepios e morcegos se passando por andorinhas. A aldeia pegava fogo de repente e os céus escurecidos recobriam-se de fumaça negra do luto. Nos cemitérios brotavam agora pomares com frutos secos , ela havia se despido para ele e colhido rosas de areia, agora os sinais haviam sido trocados, porteiras fechadas, os mata-burros permaneceriam só nas fotografias.A aldeia criança agora menstruava, os seios apontavam como as laranjas-meninas e as flores de pessegueiros cobiçavam o canto dos bem-te-vis. O primeiro olhar ficara depedurado na cerca de ripas, o vento envelhecera, trocara de alforge e saíra a perseguir os caminhantes, desnudando até o velho tocador de pífaro, que vivia encantado com as cartas de seu realejo. Zocha secou os olhos e continuou a ler as lições de Ulpiano no livro de capa dura de direito romano. Era agora uma outra mulher. Os homens faziam leis para cumpri-las, mas, não as obedeciam, e então criavam as penas, os presídios, os exílios para se auto-castigarem. A perda das ilusões também leva a um auto-flagelo que conduzia à prisão da realidade, um exílio atormentado onde as ex-crianças se auto-punem, a consciência chora as fissuras perdidas. Zocha era agora uma flagelada composição matérica fragmentada, os urubus esperavam seus escaninhos, doloroso era ouvir a voz do vento rouca e ofegante a lamber-lhe ainda os ouvidos moucos, na loucura dos sinais das sílabas daquela língua morta...

Meia-Volta


pintura/Lilianreinhardt

(Memoriais de Sofia/Zocha)


- Meia-volta, volver!!! Era assim que a gente recebia as ordens na fila para desfilar e aprender a comemorar as datas bentas e Zocha caminhando nas ruelas da Vila Guaíra acabava sempre por retornar para espiar mais de perto aquele caramanchão de jasmins plantados por dona Lair ou levava um puchão de orelhas para cumprir com a ordem na fila do Grupo Itacelina Bittencourt.. Que jardim perfumado! Um abelheiro ao longe dançava! Parecia não haver mais buracos nem crateras, nem lobisomens naquela lamacenta rua Goiás que assustassem os cavalos nas carroças que por ali passavam. Se bem que o "Guacho" sempre surgia nas esquinas, com seu capotão negro, aquele saco horrendo nas costas e a rua esvaziava-se. (O menino Quinzinho irmão de Zocha tinha pavor daquele Guacho.) Aquele lobisomen gritava longe, tentava afogar os sinos da Ave-Maria e a tarde morria dolorosa com seu lamento porque seus gritos explodiam os ecos e por onde passava, ele urrava com a própria dor que tentava expulsar de si e do mundo . A cada vaso um sopro! Nos remoinhos os ventos quando mentirosos são sempre apaixonados, estilhaçam com suas varreduras os lugares por onde passam, salpicam de litanias disfarçadas as ruelas silenciosas com seus arremedos mal cozidos, a menina caminhava em frente, seguia rumo à Vila Lindóia, teria que cruzar a linha do trem. Olhava para um lado, olhava para outro lado, a subida da ladeira era cansativa, nenhum apito, nenhum sinal, nenhum corcoveio, o céu limpo, as visagens aquela hora dormiam, o pergaminho de sangue guardava-se sob o hímen...No céu as pipas rodopiavam os olhos, a Vila planava com suas asas, com suas fileiras e teares de casas de madeira, com suas ruas lamacentas e seus pontos de buracos esgarçados, com a venda do Rufino balouçando os seus varais de linguiças com mosquitos e queijos de óstia santa, com suas igrejas Bizantinas de prateadas e douradas cúpulas sinalizando para o pouso das revoadas de crivos da memória, com a imensa igreja romana de madeira do padre Santo com sua nave romanica assentada ao chão como uma pedra, ninguém acreditaria que aquela aldeia levitava...ninguém
acreditaria que a Vila Guaíra tinha pernas, tronco, membros, asas e singrava pelos ares com seus carroções e carroças polacas voadoras sob o frio gelado dos invernos a pairar além dos mirantes das araucárias sobre a velha Curitiba...

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