quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Lago da alma no tempo/II


foto/L Reinhardt



(Memoriais de Sofia/Zocha)
... sabugueiro do meu quintal, catedral verde donde repicam os sons de tua abside e donde vejo levedar de tua nave a noite semeada.../diz-me de onde vens e para onde vais? (LR)


Um dia, não distante de léguas ou acasos, descreio de acasos, o universo é sábio e consciente” e cada formiga é única como diz Borges, pois que a Essência dela necessita para execução de suas precisas leis que regem seu curioso universo” (*) eu a vi plantar uma mudinha verdinha e raquítica de uma árvore chamada sabugueiro, na terra árida, que ela adubara durante longo tempo com esterco de galinha de suas hortas em seu quintal de araucárias e bem-te-vis. Plantou o pequenino ramalhete como planta medicinal para proteger as suas crias. A árvore cresceu, agigantou-se, tornou-se adulta, entroncou-se, deitou raízes ameaçando derrubar muros, romper cercas e irrompeu com seus mil braços sobre o telhado da velha casa de madeira, abraçando o seu ninho e os filhotes e criando novos nichos sobre a realidade seca de muitas estações. Mas, numa manhã repentina, com o nascer do sol, aquela semeadora que a plantara foi convocada após dolorosa enfermidade, para uma outra seara em nova dimensão e como uma garça branca levantou vôo do ninho e este vôo de branca ave eu vi em sonho pouco antes dela deixar a realidade dos meus cinco sentidos.Hoje, na madureza provedora, no entremeio das rendas e das folhagens desse pé de sabugueiro único, entroncado
e desgastado e já apresentando sinais dos tempos, quando a lua ilumina com seu farol as noites geladas desta aldeia, vejo fervilhar uma plantação de sonhos em seus braços e espigarem escritos plantados sob o pergaminho de seus troncos, como legado de sementes, pois os sonhos são plantas que só nascem e vingam sob a madeira de cerne do fiel da realidade. E, quando chega a primavera esta árvore entrega-se à própria florada da alma e transforma-se num imenso bouquet, recebendo as abelhas que vem retirar do néctar da generosidade de sua fonte silenciosa o sumo para modelar o cântaro de suas colméias, enquanto as borboletas, os pássaros, os marimbondos, desafiam os véus da cela do meu olhar inquisidor. Um dia aconcheguei-me entre seus braços e depositei em seu colo- para que abençoasse- um bouquet de rosas vermelhas antes de enviá-lo a quem nunca o esperava .A velha árvore olhou-me, sorriu e deitou uma lágrima de tépido orvalho sobre o chão e senti a sua quentura espinhar-me os pés descalços sob a terra úmida. Ela sabia das coisas, seu coração me contava sempre e ainda me conta...




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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

ENTRE CORRENTES UMA ELEGIA PARA NIKOLAO






Meio longe ou meio perto só uma mancha imensa
na retina de borra da tela esmaecida. Não sei se
passo perto ou passo longe, se fico em cima ou se
fico embaixo, se o banco é alto, então, minha visão
é abaixo da linha do horizonte, mas a grande bacia
da água é muito grande, uma imensa cratera e gira
o meu olhar como em decanto, não consigo segura-lo
e a figura daquele homem como uma grande estátua
me horroriza. Como dificuldade olho a grande mesa,
há leite, pão feito em casa, canecas esmaltadas, mas,
não consigo ve-la...não a vejo, os pés de madeira bruta
sobem aos céus como grandes colunas. Me agarro com
dificuldade neles e consigo subir com dificuldade sobre o
banco. Aquele homem ao longe tem uma barba muito
longa, como uma velha árvore tombada permanece
naquela posição imóvel. Os circunstantes arrastam seus
enormes pés...ouço-lhes as correntes, há como é
terrível ouvior os sons de correntes, correntes que
degolam, assim o matadouro próximo daqui tá
fazendo agora, correntes que se usam em pescoços
com santinhos, correntes que em cadarços amarram
sapatos, que afundam pregos em sua sola...há o solado
dos sapatos e o velho sapateiro Lucidório que mora
no bairro Jardim Paulista, há alguns quilometros daqui
do escritório...com seus sapatos consertados, congelados

naquelas prateleiras com cheiro de cola, tinta e fungo de
pés... os pés que são suportes e arrastam correntes...mas,
a barba enorme daquele homem sentado continua
fustigando o meu olhar como uma imensa mancha
que o tempo, nem as águas das chuvas não conseguem
diluir...sua barba é uma enorme corrente serpenteando
as dobras do instante. E eu, não consigo segurar o instante,
a palavra foge, se esfuma, apenas a ouço e já a vejo
despregar-se no tempo, mas, a grande mancha se
reconfigura na tela e revejo com claridade atrás da
palavra o velho alemão, Nikolao, meu avô, com suas
longas barbas, os pés dentro da bacia de água cheia
de sangue e uma ferida profundamente escavada
sangrando-lhe intermitentemente de uma das
colunas de suas pernas...No vazio do espaço a
formatação das linhas das águas que se esvaem,
a barulheira na farmácia aqui ao lado, o cinza
recaído sobre o gramado da manhã, as correntes
se arrastando e se despetalando no mesmo ritmo,
tudo sempre se esfumaça, se rasga, sine die...

sábado, 16 de outubro de 2010

A parteira






Memoriais de Sofia/Zocha



Lá vem ela, passos compassados, saia longa, franzida, batendo quase nos pés, tão distinta, uma refinada dama, parece emergir de uma tela de Seraut ou de Manet, era uma senhora de multiplas pétalas dona Margarida, aquela parteira alemã que assistiu ao nascimento de quase toda a população daquele bairro pobre da Vila Guaíra. Mora ao lado de nossa casa, na rua Goias, numa pequena morada de madeira, com janelas de duas folhas revestida de heras e cercada por um pequeno jardim de buganvílias e muitas margaridas.Uma casa silenciosa, um casa memorial, uma morada de memórias como ela, memória viva, tem uma farta coleção de revistas O cruzeiro, Fatos e Fotos, e uma estranha foto na parede desenha-lhe um perfil de uma dama como que saída dos quadros impressionistas, com sua beleza nórdica.O cabelo cor de neve guardava uma peruca sempre coberta por uma tênue rede, os olhos de safira azuis encravados entre as nervuras das rugas do rosto alvo, o sorriso miúdo, a voz rouca como a ecoar de profundo labirinto, do outro lado de sua morada habita o único filho ,Vírgilio, alemão casado com a bondosa e simpática Lourdes, uma pernambucana sempre com um sorriso de maracujá doce...
E como ela não tem televisão, toda a noite passa beirando a cerca de ripas para ir assistir a novela, ou os seriados bonanza, Laramy, na casa de Florami, a mulher estatua, esposa do funcionário Dirceu do Tribunal . Ela tem um sorriso lacônico e profundo e guarda mistérios com aquela bolsa preta e seus instrumentos. Pisa firme no chão, todos a conhecemé única, de olhar intenso e suave e passos compassados. A janela de nosso quarto na lateral da casa abre bem diante de uma das portas da cozinha de dona Margarida. Quando ela abre a porta a noite que dá frente para a nossa janela e joga a água de suas ablusões, de sua bacia esmaltada, parece chover no mundo, pois que guardarão de mistérios aquelas águas placentárias que ela rega o mundo com o segredo das intimidades da vida que tão bem conhece?




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