quinta-feira, 16 de setembro de 2010

DOS GRÃOS DO ALFABETO





(Memoriais de Sofia/Zocha)




Vejo-a agachada afofando a terra. O regador ao lado, o balde, o esterco bem misturado. Vejo-a regando todas as tardes, incansáveis canteiros naqueles quintais. Vejo as sílabas apontarem do chão, sob o retângulo dos canteiros e milhares de mudinhas verdinhas buscarem a quentura do sol. Vejo-a transladando as mudas, acompanho os versos comporem-se e o mistério acontecer à mesa de tábuas escovada a pedra. Miro aquela santa ceia dependurada na tosca parede que ainda não sabia quem a pintara e também ela não sabia mas, sei que ao centro existe um ponto magnético donde emana o calor e que ele pode estar à mesa do amor agora quando ela cortar o pão quente que acabou de desenfornar. Espelho-me no chão lustrado, o vassourão corre como uma gangorra caleidoscópica e meus olhos correm juntos, inesquecível aquele solo de ternura que me aquece e que guardam os grãos da palavra. Verso a verso estiro o verbo que cai em contas das gotas dos meus olhos e borra minha ternura, lembro daquela janela imensa do meu quarto, que se abria às sementes que agora brilhavam no céu e esses pontos me reescavam os grãos do alfabeto da vida, que ela conhecia e semeava sem saber ler, naquele livro manuscrito de sementes e que meu olhos respingam do tinteiro e borram as minhas páginas e preciso de mata-borrão...


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