terça-feira, 31 de agosto de 2010

MISSA EMPÍRICA







(Memoriais de Sofia/Zocha)



Enquanto os sinos dobravam na igreja ortodoxa entre os cedros no topo da colina, na apostólica romana na concha do vale da Vila Guaíra quebravam-se as vidraças, fugiam os carneiros do retábulo, despregavam-se as pétalas das palmas bentas, as sílabas voavam dos salmos, os santos desciam dos altares indignados a investir contra os fiéis com suas máscaras que ajoelhados assistiam a missa empírica.
Frei Lucas não conseguiu mais caminhar, congelou-se em sal de estátua, derrubou o cálice de estanho do altar e virou santo.
Pelo chão o vinho derramado agora, esparramava-se e um rio vermelho começava a inundar a igreja enquanto estilhaçavam-se os vitrais e os corvos dos trigais alvoroçados guerreavam entre si.
Os balanços do pátio da igreja católica também, balouçavam as nuvens e já alcançavam as casas do bairro pobre da vila Guaíra e o vendaval
impiedoso sibilava com seu gume as tranças da menina Zocha, tranças que eram trilhos por onde corria pedalando a sua " Ciclone" verde musgo, a desafiar as bofetadas do vento e navegar sua ave-pipa pelos ares e a tecer com esses fios os pulôveres dos irmãos para os invernos gelados e rigorosos de sua Curitiba. Os elefantes de Dalton Trevisan ocultavam-se agora, nas jaulas em derredor do Passeio Público. Contemplavam só de longe o revoar dos pássaros pelas árvores com os olhos congelados...

Dona Hilda bate forte os punhos sobre a mesa de taboas largas de madeira crua, a senhora de Chestokova e de Schoenstat que a perdoasse pois lhe tremeu o altar de madeira da velha igreja de São Cristóvão. Filha de imigrantes carregara na roça em Santa catarina balaios de batata e fardos de fumo para o pai às costas e quando trabalhou no açougue este lficava-lhe com o salário porque era preciso ajudar a criar os demais onze irmãos, eram doze




para sustentar na imensa mesa rodeada de bancos compridos sem encosto, na cozinha de chão batido. -Temos que comer e um cheiro de ave depenada vem do altar, disse em voz sofrega. Galinha aprendeu ela, se torce o pescoço mas, anjos não roubam nem perdem asas, diz. Temos que desocupar essa casa, não se come letras, os pratos estão vazios, nas pereiras as borboletas estão parindo morcegos, a privada de buraco vai explodir de uma hora para outra e os vermes criarão asas e não reclame se baterem disfarçados de mendigos de solidão às portas da noite pela cidade, a mendigar amor e se apoderar de óleos e pão guardardos pelos incautos que ainda cultuam a boa fé, a implorar-lhes falso pão de cada dia, e antes que o barco vire, vamos aliviar-lhe o peso. O senhorio assinou nossa carta de despejo. Esse país e suas leis no expulsa do mundo de novo. Não há juiz que nos conceda outro espaço agora, não temos casa, e não somos família reconhecida perante a lei, bastardos são execretados, vivem em exílios, daqui há pouco, em vinte e quatro horas...a barriga tá roncando, vou até a cidade, olhou a televisão Empire de caixa de marfim, olhou a geladeira Climax que tanto precisava, pensou naquele anel de jade de pedra verde, enganamo-nos com pedras...


E assim congelou-se o pátio da igreja com seus balanços onde os sonhos flanavam...

Uma casa bombardeada foi alugada numa chácara distante sobre o morro dos butiazeiros, no bairro da Cruz do Pilarzinho, talvez os anjos estivessem lá e na lista dos aprovados do vestibular da Faculdade aparecia o nome da menina Zocha...


www.lilianreinhardt.prosaeverso.net/visualizar.php

sábado, 14 de agosto de 2010

PULOVER PÚRPURA



                               pintura/ Lreinhardt/EDA 094


Memoriais de Sofia (Zocha)

....na lã da infância/se guarda o eterno!

{Entre pacotes de trigo, fubá, açúcar Diana, café Marumbi, latas de azeite Fanadol , Primor, pacotes de gordura vegetal, pedaços de sabão Amazonas, latinha verde de margarina Saúde,com a estampa daquela menina de laçinho, lá estavam aqueles com novelos de lã coloridos embrulhados em papel celofane .Que ansiedade!]

Com que expectativa eu vinha pela estrada ajudando a mãe a carregar as sacolas da venda do seu Rufino, só na esperança daqueles novelos. Aprendera a tecer com Maria irmã de Edilia, a manca, dentuça e crente, as irmãs que moravam numa casebre, de chão de barro, na beira da linha do trem , na vila Lindóia e que tinham as panelas de alumínio areadas,mais brilhantes do mundo, dependuradas nas paredes e naquele paneleiro em pé como um torre acesa.

Maria trabalhava longe numa fábrica e tinha uma bicicleta Monark cor bordeaux, com rede de fios coloridos na roda traseira. Como eu ficava deslumbrada com aquela bicicleta... Foi Maria quem me ensinou a trabalhar com as agulhas. Mas, a mãe só comprou a quantidade certa de novelos para os pulovers que eu ia tecer, depois de eu haver tecido o meu primeiro pulover, é claro...

E a artesã ficava feliz com o primeiro emprego de tecelã, já havia treinado muitas mantas, tecido kilometros de tripas em ponto meia que se esticavam que nem elástico e compunham um grande varal que podia agasalhar o bairro da Vila Guairá inteiro.

E foi assim que a mãe confiando no meu tear comprou aqueles novelos de cor púrpura para eu tecer a blusa de Maruska polaca filha da dona Nuska à qual a mãe devia muitas obrigações. Daí é que nasceu o primeiro pulôver.

Eu ia construindo os tijolinhos, entre pontos meias e tricots palmo a palmo e o pulover nasceu. Como era lindo e cheiroso aquele pullover de lã barata, Eu ficava orgulhosa porque havia tecido sozinha aquela peça, quer dizer, orientada por Maria, mas, ele era cheiroso como o pão que a mãe amassava.

Que alegria poder tecer com as próprias mãos, construir com as mãos. E assim ficou de pé o pulôver cor de púrpura e a mãe de agora diante trazia no meio das compras da venda do Rufino as lãs baratas para eu tecer os pulovers para os irmãos. Jorginho de franjinha Curumim ganharia um azul claro, , cor de girasol para a irmã Malu, branquinho para Luisa, há esse da Luisa um dia eu errei e fiz uma manga com tripa comprida e tive que desmanchar tudo...


Que contentura habitava o coração daquela menina.. Um cheiro inesquecível de lã cai dos olhos desse sal do agora, mas as agulhas moendavam e o fio serpenteava, saía da linha que se abria desde a roca do porão daquele bangalô da rua Alagoas, a gente esticava e ele subia depois pelas pipas, pulava a janela do meu quarto que dava para a rua principal do bairro e enlaçava os pontos de tudo que acontecia por ali.

A dona Lair mãe da Soninha de cabelo vermelho, menina mimada, filha única, sardenta igual eu, era muito dengosa, a mãe fazia-lhe todos os mimos e eu só apanhava. Nossa!!como ela era bonita!

E eu gorducha com aqueles cabelos compridos demais que a mãe penteava todos os dias e fazia uma trançona com fita dependurada e mandava ir no armazém da polaca Vanda sem olhar para os lados.- Vai buscar um pacote de banha! dizia franzindo o senho sempre de vaca brava.

Mas, qual, no caminho encontro Arlete Kikotte Irentcha gigante, uma polaca tipo garça....querem dar uma surra na trampa da Mafalda...


Deus, eu não posso olhar para os lados...nem quando o polaco Dirceu esticou os olhos para mim nos meus quinze anos, lá na casa da rua Goiás e falou dependurado pelo do lado de fora da cerca de ripas:- Se um dia voce não for minha, não será de mais ninguém! – Cruzes...que presente!!!Nunca fui dele, e afinal fui de quem? Sou de quem?

Sou é dessa terra estranha que me tece, das agulhas que me suturam e me nascem, sou dos espinhos que me brotam, sou desse pó grávido do meu chão.
Um dia aconteceu eu sangrar a alma com os fios da ilusão que tecia e não sabia que os novelos desse sangramento jamais estancariam....

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